Com as recentes transformações e inovações tecnológicas, muitos bens deixados pelas próximas gerações não serão tangíveis. Álbuns de fotos, livros, CDs e DVDs que antes passavam por gerações aos seus herdeiros, já poderão ser deixados em formato exclusivamente digital.
Os novos hábitos de consumo e as tecnologias recentes permitiram a acumulação de verdadeiras fortunas armazenadas de maneira virtual. Contudo, embora a transmissão patrimonial seja regulamentada há muito tempo pela legislação brasileira, a herança digital passou a ser considera como objeto do Direito das Sucessões apenas recentemente.
Não obstante o Brasil ter editado no ano passado a sua Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGDP) – Lei n. 13/709/2018[1], que confere aos indivíduos uma maior possibilidade de controle e compartilhamento dos seus dados pessoais, até o presente momento há uma lacuna no que diz respeito à tutela jurídica dos dados pessoais do usuário falecido.
Não raras são as vezes em que o falecimento de um indivíduo acarreta em inúmeros compartilhamentos sobre a sua vida pessoal. Fotos, vídeos, mensagens são compartilhadas e divulgadas a todo o momento, potencializando os riscos de violação a direitos da personalidade.
O debate sobre o tema adquiriu destaque recentemente na Alemanha, quando os pais de uma menina que faleceu aos 15 anos em uma estação de metro pleitearam o acesso à conta do Facebook da filha, com o intuito de investigar se a sua morte teria decorrido de acidente ou de suicídio. Em primeira instância o pedido foi deferido, todavia, reformado pelo Tribunal, que entendeu que o acesso à conta representaria uma violação à expectativa de privacidade da jovem[2]. Após novo recurso, o Tribunal Federal de Karlsruhe autorizou o acesso da conta pelos pais[3].
No Brasil, os familiares da jornalista Juliana Ribeiro Campos, de 24 anos, falecida em maio de 2012 ajuizaram uma ação contra o Facebook Brasil na comarca de Campo Grande para excluírem o perfil, visto que as ferramentas disponibilizadas pela própria rede social informaram que a página havia sido transformada em um memorial post mortem, conforme a política da empresa para usuários falecidos.
Aqui, cabe destacar que além de haver o risco de violação a direitos do falecido, o acervo digital pode ser um grande potencial econômico. Bens virtuais raros, criptomoedas, arquivos valiosos armazenados para efeitos de propriedade intelectual ou até sites que servem como fonte de renda são alguns dos exemplos de formas de patrimônio que não devem ser ignoradas pelo direito sucessório. A aferição de seu valor pode, inclusive, afetar a parte legítima destinada aos herdeiros.
Diante da ausência de dispositivo que trate dos bens armazenados virtualmente no Código Civil e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGDP), a transmissão desses bens através da herança decorre de interpretação extensiva e sistemática, ficando, em regra, com os familiares mais próximos, conforme dispõe a ordem contida no art. 1784 do Código Civil.
Ainda que a referida norma permita a caracterização do acervo digital como parte do patrimônio do falecido, a transmissão desses bens através da herança pode encontrar certos obstáculos.
Parte crescente do patrimônio digital, especialmente aqueles que estão armazenados no que se entende como nuvens, é composta por arquivos adquiridos através de diversos tipos de serviços online, cujas regras de acesso e transferência acabam sendo ditadas pelos próprios provedores. Em razão da ausência de legislação específica, estes arquivos geralmente possuem sua transmissão regida exclusivamente pelos termos de serviço proposto.
Contudo, alguns provedores já vêm apresentando algumas alternativas em seus termos de uso. O Instagram, por exemplo, possibilita que qualquer usuário denuncie a conta de alguém que faleceu para que transforme em memorial e permite que parentes solicitem a remoção da conta[4]. Já o Facebook oferece a opção de o usuário, ainda em vida, se manifestar se deseja manter sua conta como um memorial ou se quer excluí-la de forma permanente com a sua morte, podendo até, escolher um “contato herdeiro” para administrar sua conta[5].
Em grande parte do mundo, a transmissão de parte significativa dos bens armazenados virtualmente pode ser efetivada através de um “testamento virtual”. Já existem serviços adequados para tratar este tipo de assunto e companhias especializadas nas disposições referentes ao acervo digital no caso de morte, como é o caso da SecureSafe[6] e PasswordBox, que permitem determinar quem será o beneficiário de contas de e-mails, senhas, perfis de redes sociais ou conteúdo armazenado em nuvens em caso de falecimento do titular. No Brasil, contudo, ainda há insegurança quanto à validade jurídica de tais testamentos.
No entanto, é necessária uma norma que tutele de maneira própria e contundente o assunto. Não obstante a timidez do debate, a ausência de regulamentação específica dificulta a atuação perante o judiciário e posterga o sofrimento dos familiares com o retardamento da conclusão do inventário e com as lembranças diárias do ente querido.
Enquanto não há regulamentação específica sobre o tema, com o gradual aumento deste tipo de demanda caberá aos tribunais estabelecerem entendimento coerente acerca do assunto. Resta-nos saber como será daqui para frente..
Referências:
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm
[2] Deutsche Welle. Berlin court rules grieving parents have no right to dead child’s Facebook account. Disponível em: <http://www.dw.com/en/berlin-court-rules-grieving-parents-have-no-right-to-dead-childs-facebook-account/a-39064843>.
[3] EXAME. Pais têm direito de acessar Facebook de filha morta, diz tribunal alemão. Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/pais-tem-direito-de-acessar-facebook-de-filha-morta-diz-tribunal-alemao/
[4] INSTAGRAM. Denúncia de conta de uma pessoa falecida. Disponível em: https://help.instagram.com/151636988358045/?helpref=hc_fnav
[5]Facebook. Your Digital Legacy. Disponível em: https://www.facebook.com/help/660987010672165#faq_1568013990080948
[6] https://www.securesafe.com/en/